Apesar da alta volatilidade da guerra tarifária, que torna o cenário no curto prazo nebuloso, as tarifas americanas podem não apenas prejudicar como também beneficiar determinados setores da economia brasileira. Mesmo assim, diante do alto nível de incerteza, o Brasil deve buscar diversificar seus parceiros e abrir novas frentes comerciais, afirmam especialistas ouvidos pelo Valor.
No cenário atual, em que as tarifas recíprocas estão suspensas e há sobretaxas de 125% sobre bens da China que entram nos Estados Unidos, a perspectiva é que produtos brasileiros que foram perdendo espaço para os chineses, como têxteis e calçados, se beneficiem e ganhem maior fatia do mercado americano.
“No cenário de hoje, a única diferença de condições de acesso ao mercado americano é em relação à China, que está com uma tarifa de 125%, uma tarifa proibitiva. O Brasil hoje concorre no mercado americano com a China em cerca de 700 produtos. Deste grupo, os EUA importaram cerca de US$ 12 bilhões do Brasil e US$ 29 bilhões da China no ano passado”, afirma Abrão Neto, CEO da Câmara Americana de Comércio para o Brasil (Amcham Brasil). Além de vestuário e calçados, ele cita máquinas e equipamentos, alguns químicos e artigos da construção civil.
Na semana passada, o governo Trump suspendeu as tarifas recíprocas de 10% por 90 dias e anunciou sobretaxa de 125% sobre produtos chineses, o que foi revidado na mesma proporção por Pequim.
Se as tarifas de 10% sobre itens do Brasil retornarem, a perspectiva é que têxteis, calcados e vestuário sejam beneficiados, assim como máquinas e equipamentos e papel. Devem ser prejudicados os setores de aço e autopeças, enquanto aviões e petróleo não devem sofrer tanto, prevê Fernando José da Silva Paiva Ribeiro, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Os setores em que em princípio o Brasil poderia ganhar espaço no mercado americano em decorrência das taxas que haviam sido impostas são o têxtil, calçados e vestuário. Já fomos um exportador importante desses itens para os EUA, mas fomos perdendo lugar para a China e para outros asiáticos, como Indonésia, Vietnã e Filipinas”, diz. “Aos poucos, acabamos sendo alijados desse mercado. Mas, se os asiáticos, de fato, forem muito mais taxados que o Brasil, podemos recuperar espaço nas vendas desses produtos.”
A pauta de exportação do Brasil para os EUA é concentrada em três produtos principais que estão fora dessa lista: aço, aviões e petróleo. O setor de ferro e aços básicos deve ser impactado de modo negativo, no caso de retorno das tarifas recíprocas, assim como o de peças e acessórios para veículos, cuja taxação estava prevista para ocorrer em maio.
“O aço é um caso difícil de dizer porque vai depender muito do que acontecerá com Canadá e México, que são os principais fornecedores para os EUA”, diz Ribeiro. Ele acredita que itens como petróleo bruto, refinados e aviões e máquinas relacionadas não devem sofrer forte impacto. Petróleo e derivados estavam isentos das tarifas, enquanto aviões enfrentam pouca concorrência.
Em reportagem publicada neste domingo, 13, o “Financial Times” detalha como a intensificação da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China pode favorecer o setor agrícola brasileiro. Com a China buscando alternativas aos produtos americanos, o Brasil expandiu sua participação como principal fornecedor de alimentos para Pequim, abrangendo desde soja até carne bovina, diz o texto. A venda de carne de aves para a China cresceu 19% no primeiro trimestre do ano, segunda a associação chinesa de importadores, cita o “FT”.
Outra frente que poderia favorecer o Brasil é a de frutas. Rubens Ricupero, embaixador, ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comérciob e Desenvolvimento (Unctad) e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, acrescenta ainda que se os EUA retomarem sobretaxas de 25% sobre itens mexicanos, o Brasil tem a chance de exportar mais para o mercado americano.
Além do comércio, o grau de incerteza e a velocidade em que as mudanças vêm ocorrendo certamente devem afetar o fluxo de investimentos no Brasil, afirma Abrão Neto, ao lembrar que os EUA ocupam o topo do ranking de países que mais investem aqui. “A falta de previsibilidade afeta investimento. E creio que o cenário de baixa previsibilidade é o que tende a imperar. Não é algo que se resolverá nos próximos dias”, diz.
Ele argumenta que o cenário está longe de estar estabilizado e que, diante disso, será importante ver como a economia americana reagirá a essas movimentações.
“É a demanda do mercado americano que orientará as compras americanas e, por consequência, o tamanho do apetite por produtos brasileiros”, argumenta. “Ou seja,o principal fator de preocupação hoje é que a economia americana não desacelere e mantenha boas condições de saúde para que a demanda de produtos brasileiros continue.” Por ora, afirma Ribeiro, é incerto que os EUA tenham condição de produzir todos os tipos de bens que haviam sobretaxado nos últimos meses.
“Na verdade, nenhum país do mundo consegue ter estrutura industrial que dê conta de tudo, de todos os produtos. Hoje, depois de 50 anos de globalização, de cadeias globais e setores que foram se dividindo, a produção está concentrada em algumas atividades; o restante se importa”, diz. “Há vários itens que os EUA simplesmente não têm mais produção doméstica. Em alguns casos, isso é irrecuperável.”
O estudo Economic analysis of U.S. tariffs introduced over March-April 2025 (análise econômica das tarifas americanas introduzidas em março e abril de 2025), divulgado no início do mês pela Victoria University, em Melbourne, Austrália, mostra que as sobretaxas anunciadas nos últimos meses poderiam levar a queda de 33% das importações pelos EUA. “Se o modelo estiver correto, trata-se de uma queda brutal.Nesse caso, de redução da demanda agregada dos EUA, todo mundo que exporta para lá sofrerá”, diz Ribeiro.
Ricupero diz que o governo Trump está olhando para os dados de forma seletiva,não levando em conta setores onde há vantagem sobre outros países. “A mentalidade deles é muito atrasada, só veem balanço de mercadorias, não olham serviços. Podem levar desvantagem em mercadorias, mas têm enorme vantagem nessa economia ‘invisível’.”
Diante da incerteza sobre se e quando todas as tarifas anunciadas anteriormente serão aplicadas ou quais prevalecerão, Ricupero defende que o Brasil aproveite para aprofundar laços econômicos com outros parceiros, como os asiáticos. “Se juntarmos China, Japão, Coreia do Sul, Singapura, Índia, Malásia, Indonésia, temos 50% do nosso comércio. Interessa ao Brasil prospectar esses mercados”, diz. “Eu acho que os americanos se enrolarão, criarão muitos problemas. Mas, para quem pode diversificar, como é o caso dos asiáticos e do Brasil, existem oportunidades.”
Fonte: Valor Econômico